quinta-feira, 11 de março de 2010

as trocas simbólicas



Erótico ritual que demanda o corpo alheio no meu corpo morto. Obra de arte estabelecida através do ritual, ato solene de vestir uma calcinha de cabelos. Onde mora a essência da arte em um mundo desacralizado como o nosso? Onde reside o ritual verdadeiro de comunhão entre os seres, para além das dinâmicas doutrinantes e assépticas das igrejas e templos religiosos? Onde se encontra a potência da vida, de sentir a vida iniciada na pulsão de sua fragilidade, na eminência da morte? Em um mundo desacralizado, onde o ritual foi burocratizado pela instituição religiosa, que rege com força política o ímpeto de transcendência e segrega a morte da vida, procuro corpos capazes estabelecer uma verdadeira troca simbólica. Como encontrar pessoas dispostas ao retorno sacro da experiência primitiva do ritual abjeto? Muito além do fetiche da moda e da perversão da pornografia comercializável, a obra-proposta-ação está ligada ao ato pelo desperdício, gratuidade do gesto pela simples possibilidade de fragilização psíquica do ser. A obra além do objeto calcinha de cabelo, do fetiche, da obra passível de troca econômica e agregação de valor cultural, obra que não reside na coisa, mas no ato, na dissolução do lugar-comum pela busca da experiência sensitiva. Busco pessoas dispostas a completar minha pulsão de troca pela própria impossibilidade da troca. Eu, ser descontínuo, solitário e sensivelmente carnal, busco o contato com o outro através daquilo que um dia foi o meu corpo, foi o meu sujeito perante a sociedade, foi parte do meu desejo. Preciso sentir a potência da vida através da vertigem de morte que pode residir na arte, ritualizo meu corpo e suas funções, minhas escolhas artísticas buscam a dissolução das mentiras de minha própria psique prega em meu sujeito. No ritual solenemente solitário desconstruo os sonhos da continuidade no outro. O desejo pelo outro se dissolve na minha carne viva, sensível e pulsante. No ritual de cortar os cabelos, de vestir os cabelos, de manipular, tecer, adornar e resguardar os restos corporais, compreendo a sacralidade da vida em sua própria descontinuidade flutuante entre tantas outras descontinuidades semelhantes. Sozinha percebo o meu corpo pelo seu resto, o meu sujeito surgido da primitividade da matéria morta, abjeta, abjetada, doada pelo outro, na vontade de existir simbolicamente para além do momento, da consciência e do corpo vivo. Ritualizando a separação e o retorno do abjeto compreendo o simulacro do meu sujeito, que se desintegra na essência da própria matéria, em algum ínfimo estado de consciência atinjo o sublime, no mesmo instante mortífero que me perco do sujeito. Corta os cabelos e vestir os cabelos são rituais capazes de dissolver meu sujeito, por apenas um instante, pelo retorno ao abjeto caído para sua construção. Me perco na abjeção, na essência fundamental do tato e da carne, na abjeção, para encontrar contraditoriamente o seu duplo, o sublime. Epifania existencial manifestada pelo limite do contato ritualístico com o abjeto. Retorno ao primitivo, ao anterior ao sujeito, pré-simbólico, onde todos os corpos se igualam pela matéria em transição, da vida até a morte, um instante de um jogo erótico que envolve e todos os seres existentes, vivos e mortos. Consciência pela perda de controle da própria consciência. Desejo, acima de tudo para com o outro, proporcionar a possibilidade de uma epifania semelhante, pela troca de papéis corporais, territórios recombinantes de sensações capazes de deslocar o sujeito. Desejo meu, erótico, de troca corporal, troca de estabilidade por epifania sagrada, individual dissolvido da coletividade da pulsão de vida, de experiência do estado sublime do corpo constituído, agora, juntamente com o seu abjeto e o abjeto do outro, matéria pela matéria, perda do sujeito pela experiência da condição sublime de corpo vivente.