quinta-feira, 28 de maio de 2009

nem sujeito nem objeto




Por que a abjeção? Por que o abjeto? Porque a história e a sociedade impõem-nos. No horror. Os ritos, as religiões, a arte não fariam mais que conjurar a abjeção? Arte do abjeto, das excreções, daquilo que desestrutura a ordem, a identidade e os significados controlados e controladores, é uma arte fruto da violência da exclusão da abjeção, mas que, ao mesmo tempo, a desafia. Essa arte não apenas comemora a barbárie pós-moderna e a liberdade que a acompanha, como também expõe a dor, o trauma e o recalque provocados pela exclusão violenta da abjeção. A arte abjeta é sugerida como catarse, uma espécie de válvula de escape e um balanço, compensação dos recalques purificadores provocados pela cultura. Do entusiasmo à dor, a catarse revela o impuro, o outro da sabedoria, o enfrentamento com a impossibilidade de desvencilhar-se do impuro mantém aberta a ferida que permite sua re-significação, diferente do impuro original a repetição sobre um outro registro aquém e além da linguagem.



sábado, 23 de maio de 2009

Arachne




Arachne era uma iniciada na arte de tecedeira em que se tornara incomparável. A sua fama ia tão longe que as ninfas das montanhas e dos rios da Frígia e da Lídia saíam das grutas onde habitavam para vir admirar os seus trabalhos, e era tão perfeita a tecer que se dizia ter sido ensinada por Palas Athena. Arachne, tão hábil a tecer como orgulhosa, detestava que a considerassem discípula de Athena, pois entendia que os segredos da sua arte de ninguém os aprendera e só a ela mesma os devia, e um dia ousou desafiar a própria deusa: «Que venha competir comigo, disse, a tudo me submeterei se for vencida!» (Ovídio 1961, VI, 25). Athena tentou dissuadi-la, mas Arachne, ousada e insubmissa, persistiu, e por fim a deusa, irritada, aceitou disputar com ela a prova de quem haveria de tecer a melhor tapeçaria. Arachne ilustrou em expressivas imagens o assédio sexual de deuses machos às mortais desprevenidas, a algumas ninfas e até a divindades, como por exemplo Júpiter disfarçando-se de touro para raptar a jovem Europa, de cisne para cativar Leda, de sátiro para violar Antíope, de serpente para penetrar Prosérpina e de ouro para seduzir Danae. O trabalho de Arachne era tão perfeito que a deusa não suportou a afronta da terrível acusação, que ultrapassou os limites da impiedade: era o grito da iniciada que não tolera o ultraje à sua essência de ser humano e sobretudo de mulher. A deusa Athena em cólera despedaçou a tapeçaria de Arachne onde os divinos e nefandos crimes se exibiam, e bateu-lhe no rosto, três ou quatro vezes, com a lançadeira que tinha nas mãos. Arachne desesperada correu a enforcar-se mas, no momento em que se suspendeu, Athena impediu-a de morrer — e transformou-a em aranha, suspensa pelo fio.


segunda-feira, 18 de maio de 2009

através do espelho




"O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o invisível do meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim".
O olho e o espírito
Maurice Merleau-Ponty


da solidão



Pago caro e usufruo sozinha a liberdade da solidão, tenho todas as pessoas presas em um instante de corte, seus genes, o cheiro e a memória afetiva estão amarrados. Sempre só, vou tecendo e costurando pessoas, a posse de seus corpos, preenchendo o vazio do meu útero seco, que aborta as continuidades afetivas em prol do momento único, ritualístico e poético com os corpos. O nascimento e a morte em um lapso temporal. Corpos nascem e morrem em minhas mãos, entrelaçados por uma existência efêmera construída apenas perante meu olhar parcial e limitador de um universo corporal infinito. A angústia inicia-se com o nascimento que é seu próprio aborto, um prelúdio do fim, gozo mortífero, dionisíaco, erótico e carnal do encontro e imediata repulsa entre os corpos. No autêntico encontro das carnes, a vida transborda com toda intensidade das vísceras até seu completo esgotamento, surge então o sujeito que termina provocando o fatídico aborto.
Preciso viver a sensibilidade humana segundo a ética das minhas próprias vísceras ou a jornada da existência se torna uma mera encenação medíocre, a mímesis daquilo que um dia foi o desejo. O recalque e o dilaceramento do jogo constante de adaptações e acomodamentos apenas refletem daquilo que foi o desejo. Minhas aspirações subjetivas não se limitam ao simulacro do rito, elas devem viver segundo cada ímpeto catártico do meu pré-sujeito, materializado em carne e secreções que se contraem aos caprichos do desejo. Preciso sentir com os poros, viver da ânsia e saciá-la até a última gota de vida. Fecundar o desejo e, em plena gestação, abortá-lo solenemente. Não seria capaz de gestar as carnes de um sujeito recalcado, traumatizado e subserviente, consigo apenas mumificar seu feto, como memória do instante da sagração carnal. Mumifico lentamente os corpos que se vão, ainda na esperança de descobrir a possibilidade de um sujeito materializado segundo uma ética própria, legitima e fiel aos poderes e fragilidades da sua própria abjeção carnal.
Cada sujeito é erguido perante uma dialética própria de circunstância visceral, carne e hormônios constantemente submetidos às dinâmicas cotidianas que vão da sobrevivência biológica à aquisição de cultura. Mentalmente tentamos decodificar as ansiedades que vem das nossas vísceras atirando-as ao mundo dos símbolos e da cultura visual. Esquecemo-nos de ver através da remela dos olhos, sentir com o couro e o sebo da cabeça, de joelhos ralados, com a garganta seca de sede, ardendo em febre e pela diarréia do ânus. Cada tecido embebido em fétidas secreções é capaz de sentir o outro através da sensibilidade do corpo, pela carne, sangue, fezes e gozo do outro. A essência humana está contida na possibilidade da troca física entre sujeitos solitários, trancafiados dentro de seus escafandros intelectuais. Sujeito este que eternamente só, carrega consigo apenas a certeza de morrer ainda limitado na descontinuidade do seu próprio eu. Percebemo-nos reais apenas quando sentimos através da nossa carne a possibilidade de outro eu, que reside num corpo semelhante e incrivelmente diferente na capacidade de sentir e ser sentido. Sem o corpo do outro ficamos presos na ficção do individuo dentro do jogo frenético da sociedade, apenas interpretando, classificando e julgando os outros através da estrutura hermética que rege a materialização dos sujeitos perante a sociedade.
Nunca seremos capazes de compreender a complexidade do outro ser, saber o que realmente se passa com ele. Estaremos sempre condenados às artimanhas estruturais da linguagem e da comunicação, construídas sobre as relações de poder que regem a sociedade. Subjetivamente nos resta o dionisíaco diálogo corporal, revelado ritualisticamente através dos desejos e sentimentos que se manifestam sobre e através da carne. Minha vontade pela arte vem da necessidade de guardar o sentir do outro, desejo esse naturalmente impossível. Contento-me, portanto, em guardar seus restos vitais na esperança de que a matéria, agora morta na capacidade de sentir, ainda seja capaz de produzir algum tipo de significado poético. Continuo atrelada ao corpo que se foi através de seus restos, percebo na minha carne suas texturas, cheiros e formas que suscitam lembranças em uma mente que inicia agora a manipulação dos signos culturais da percepção na ânsia de re-encontrar os desejos que se perderam com a matéria que era capaz de sentir.

pelos ritos corporais




Um organismo vivo em movimento espiral se desloca tão lentamente quanto a passagem do tempo. A psique e todas as suas nuances subjetivas, dos traumas freudianos à linguagem dos bites, vídeo, cabelo, registro e tecelagem. A obra finalizada em um objeto-plástico, constituído de estética eticamente processual, canônica e religiosamente sacralizada em pequenos ex-votos meticulosamente trabalhados, se mistura ao momento da ação-tempo. Performance também religiosamente estruturada. Rito público de introspecção do corpo e da mente, processo do tempo da água que demora para secar no chão e evapora rapidamente do vidro esfacelando o desenho que ainda não se encontra finalizado.