segunda-feira, 18 de maio de 2009

da solidão



Pago caro e usufruo sozinha a liberdade da solidão, tenho todas as pessoas presas em um instante de corte, seus genes, o cheiro e a memória afetiva estão amarrados. Sempre só, vou tecendo e costurando pessoas, a posse de seus corpos, preenchendo o vazio do meu útero seco, que aborta as continuidades afetivas em prol do momento único, ritualístico e poético com os corpos. O nascimento e a morte em um lapso temporal. Corpos nascem e morrem em minhas mãos, entrelaçados por uma existência efêmera construída apenas perante meu olhar parcial e limitador de um universo corporal infinito. A angústia inicia-se com o nascimento que é seu próprio aborto, um prelúdio do fim, gozo mortífero, dionisíaco, erótico e carnal do encontro e imediata repulsa entre os corpos. No autêntico encontro das carnes, a vida transborda com toda intensidade das vísceras até seu completo esgotamento, surge então o sujeito que termina provocando o fatídico aborto.
Preciso viver a sensibilidade humana segundo a ética das minhas próprias vísceras ou a jornada da existência se torna uma mera encenação medíocre, a mímesis daquilo que um dia foi o desejo. O recalque e o dilaceramento do jogo constante de adaptações e acomodamentos apenas refletem daquilo que foi o desejo. Minhas aspirações subjetivas não se limitam ao simulacro do rito, elas devem viver segundo cada ímpeto catártico do meu pré-sujeito, materializado em carne e secreções que se contraem aos caprichos do desejo. Preciso sentir com os poros, viver da ânsia e saciá-la até a última gota de vida. Fecundar o desejo e, em plena gestação, abortá-lo solenemente. Não seria capaz de gestar as carnes de um sujeito recalcado, traumatizado e subserviente, consigo apenas mumificar seu feto, como memória do instante da sagração carnal. Mumifico lentamente os corpos que se vão, ainda na esperança de descobrir a possibilidade de um sujeito materializado segundo uma ética própria, legitima e fiel aos poderes e fragilidades da sua própria abjeção carnal.
Cada sujeito é erguido perante uma dialética própria de circunstância visceral, carne e hormônios constantemente submetidos às dinâmicas cotidianas que vão da sobrevivência biológica à aquisição de cultura. Mentalmente tentamos decodificar as ansiedades que vem das nossas vísceras atirando-as ao mundo dos símbolos e da cultura visual. Esquecemo-nos de ver através da remela dos olhos, sentir com o couro e o sebo da cabeça, de joelhos ralados, com a garganta seca de sede, ardendo em febre e pela diarréia do ânus. Cada tecido embebido em fétidas secreções é capaz de sentir o outro através da sensibilidade do corpo, pela carne, sangue, fezes e gozo do outro. A essência humana está contida na possibilidade da troca física entre sujeitos solitários, trancafiados dentro de seus escafandros intelectuais. Sujeito este que eternamente só, carrega consigo apenas a certeza de morrer ainda limitado na descontinuidade do seu próprio eu. Percebemo-nos reais apenas quando sentimos através da nossa carne a possibilidade de outro eu, que reside num corpo semelhante e incrivelmente diferente na capacidade de sentir e ser sentido. Sem o corpo do outro ficamos presos na ficção do individuo dentro do jogo frenético da sociedade, apenas interpretando, classificando e julgando os outros através da estrutura hermética que rege a materialização dos sujeitos perante a sociedade.
Nunca seremos capazes de compreender a complexidade do outro ser, saber o que realmente se passa com ele. Estaremos sempre condenados às artimanhas estruturais da linguagem e da comunicação, construídas sobre as relações de poder que regem a sociedade. Subjetivamente nos resta o dionisíaco diálogo corporal, revelado ritualisticamente através dos desejos e sentimentos que se manifestam sobre e através da carne. Minha vontade pela arte vem da necessidade de guardar o sentir do outro, desejo esse naturalmente impossível. Contento-me, portanto, em guardar seus restos vitais na esperança de que a matéria, agora morta na capacidade de sentir, ainda seja capaz de produzir algum tipo de significado poético. Continuo atrelada ao corpo que se foi através de seus restos, percebo na minha carne suas texturas, cheiros e formas que suscitam lembranças em uma mente que inicia agora a manipulação dos signos culturais da percepção na ânsia de re-encontrar os desejos que se perderam com a matéria que era capaz de sentir.

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