sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Artemisia Capillāris









   










Abjeção dos corpos materializados pelas vias tortuosas da perda corporal, caída na construção do sujeito e da linguagem. Abjeção pelo resto, detrito asqueroso, resíduo morto, desperdício na ausência de vida pelo excesso de matéria humana, memória embriagada de sentidos, tato, cheiro, sabor. Abjeção pelo grotesco no corpo monstruosamente constituído pelo seu dentro, o interior repugnante de um sujeito racionalmente asséptico. Abjeção que não deixa nunca de ser erótica, corpo sedutoramente ornamentado pelos seus próprios detritos, estetização de uma vestimenta que interfere no comportamental de quem a porta, muito além do simples vestir-se controlado e paramentado pela moda, um vestir-se que carrega consigo a solenidade inerente ao ritual. Abjeção manifestada pelo rito erótico da sujeira, rito que promove a limpeza sacralizante da sujeira, construção simbólica materializada por uma linguagem artística. Abjeção estetizada a partir do erotismo, provação da vida até a morte pela compreensão da necessidade de se jogar com a matéria, depositária tanto de vida como de morte, forma única de lidar com a eminência de morte que implica no simples fato de se estar vivo. O destino certo do cadáver se assemelha ao princípio determinante do nascimento, a mistura com a matéria corporal abjeta, vísceras, sangue excrementos, tecidos mortos, carne em transição. A perda corporal fundamental do ser, consciência corporal recalcada na falta da materialidade interna do corpo, sujeito fisicamente constituído pelo recalque da sujeira. Posicionar o trabalho perante o sujeito culturalmente constituído, o meu e o teu... Organizar a perda corporal segundo uma formalidade estética, pensada além do visual, através do corpo, em todos os seus sentidos físicos e inconscientes. Indagar ao outro sobre a possibilidade do deslocamento da consciência corporal, desestabilizar no contato erótico com o abjeto, o desejo que suscita a abjeção é o princípio do desejo erótico que proponho. Toque de uma fazenda estranhamente familiar, trama de uma matéria mortalmente viva.

   
Artemisia Capillāris, 2010 - Vídeo digital Full HD - 8'28'' min.

Daniella de Moura - concepção, edição e fotografia
Christiane Birchal - fotografia
Thiago Corrêa - trilha sonora original

domingo, 1 de novembro de 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

ritual da vertigem



“Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente em uma aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos sujeita à individualidade do acaso, à individualidade perecível que somos.” O Erotismo, Georges Bataille

A descontinuidade é a condição primeira de todo ser. Cada um de nós nasce só e morre só, estamos trancafiados nos escafandros de nossos organismos vivos. Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação poderá suprimir o abismo de existência que nos separa. A comunicação experimenta o sentido de uma mentira, a continuidade de um ser em outro ser é apenas uma vertigem desse abismo. O que está em jogo no ritual que proponho é a dissolução das formas constituídas. Ritual erótico que faz parte do campo da violência e da violação, que tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto onde ficamos sem forças. Vestir o corpo com o próprio corpo, onde vestir é o desnudamento. Abrir-se na nudez que se opõe ao estado fechado, estado de comunicação que busca uma continuidade possível do ser além do retratar-se em si mesmo. A vida descontínua não está condenada a desaparecer: ela é somente colocada em questão, ela deve ser perturbada, incomodada ao máximo. A busca pela continuidade não passa de uma vertigem, sentida no tato da carne viva com o tecido morto. O desejo pela continuidade não passa de um jogo erótico, a continuidade estabeleceria definitivamente a morte dos seres descontínuos.




Proponho o ritual da vertigem que se manifestar de forma única em cada ser. Ofereço-te meus cabelos, para que sejam vestidos segundo as regras do teu próprio jogo ritualístico. Disponho-me a levar e buscar meus cabelos até você, permanecendo 24 horas em teu poder. Desejo em troca apenas um relato de tua vertigem de continuidade. Nos últimos quatro anos venho compondo um acervo de restos corporais, presentes que me servem como matéria prima. Inicio agora um segundo acervo, imaterial, impressões de sensibilidades corporais. Os interessados em compor este novo acervo podem entrar em contato pelo e-mail: vistameuscabelos@gmail.com

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

CorpoInstalação



O projeto, em sua 4 a. edição, propõe um encontro de vários artistas que pesquisam o Corpo e sua interface com as artes visuais, a dança, a arquitetura, a música, o vídeo, o teatro, a ciência e as novas tecnologias. A proposta de ocupação do espaço é semelhante à de uma galeria, com diferentes instalações, que ora recebem as performances, ora podem ser visitadas pelo público, mesmo com a ausência do corpo em ação. Com os artistas : Eva Castiel (SP), Daniella de Moura (MG), Eduardo Silva Salvino (SP), Leila Reinert (SP), Elisabete Finger (PR), Tatiana Devos (RJ) Samuel Kavalerski (SP), Tomás Rezende (SP), Nino Cais (SP), Tatiana Dauster (RJ), Flávia Sammarone (SP), – Espelho Convexo Estúdio (SP), André Masseno (RJ), Naiah Mendonça (SP), Michel Groisman (RJ), Letícia Sekito (SP), Juliana Moraes e Anderson Gouvêa (SP). De 25/09 a 18/10. De quarta a sábado, das 13h às 22h/ domingos, das 13h às 20h, aberto ao público. Performances, sextas e sábados, a partir das 20h e domingos, a partir das 18h. Grátis. Galpão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

um convite à sensibilidade corporal



Cabelos humanos tornam-se trama e urdidura para a troca entre os corpos. Vestimentas capilares, que vão da peça de roupa íntima tecida com os próprios cabelos da artista aos adornos construídos com doações, buscam corpos dispostos a sentir. Vestir cabelos pretende uma espécie de ritual doméstico, requer espaço íntimo e um tempo mítico. O espaço configura-se em função do tempo individual do corpo, tempo das mãos que tecem os cabelos e do corpo que é capilarmente despido. Tempo de vestir, de olhar-se no espelho, de crescer os cabelos e cortar novamente, tempo que materializa a obra através do eu no outro.

vista meus cabelos - Ateliê - Belo Horizonte
12 de setembro de 2009 - a partir das 14 horas

quinta-feira, 28 de maio de 2009

nem sujeito nem objeto




Por que a abjeção? Por que o abjeto? Porque a história e a sociedade impõem-nos. No horror. Os ritos, as religiões, a arte não fariam mais que conjurar a abjeção? Arte do abjeto, das excreções, daquilo que desestrutura a ordem, a identidade e os significados controlados e controladores, é uma arte fruto da violência da exclusão da abjeção, mas que, ao mesmo tempo, a desafia. Essa arte não apenas comemora a barbárie pós-moderna e a liberdade que a acompanha, como também expõe a dor, o trauma e o recalque provocados pela exclusão violenta da abjeção. A arte abjeta é sugerida como catarse, uma espécie de válvula de escape e um balanço, compensação dos recalques purificadores provocados pela cultura. Do entusiasmo à dor, a catarse revela o impuro, o outro da sabedoria, o enfrentamento com a impossibilidade de desvencilhar-se do impuro mantém aberta a ferida que permite sua re-significação, diferente do impuro original a repetição sobre um outro registro aquém e além da linguagem.



sábado, 23 de maio de 2009

Arachne




Arachne era uma iniciada na arte de tecedeira em que se tornara incomparável. A sua fama ia tão longe que as ninfas das montanhas e dos rios da Frígia e da Lídia saíam das grutas onde habitavam para vir admirar os seus trabalhos, e era tão perfeita a tecer que se dizia ter sido ensinada por Palas Athena. Arachne, tão hábil a tecer como orgulhosa, detestava que a considerassem discípula de Athena, pois entendia que os segredos da sua arte de ninguém os aprendera e só a ela mesma os devia, e um dia ousou desafiar a própria deusa: «Que venha competir comigo, disse, a tudo me submeterei se for vencida!» (Ovídio 1961, VI, 25). Athena tentou dissuadi-la, mas Arachne, ousada e insubmissa, persistiu, e por fim a deusa, irritada, aceitou disputar com ela a prova de quem haveria de tecer a melhor tapeçaria. Arachne ilustrou em expressivas imagens o assédio sexual de deuses machos às mortais desprevenidas, a algumas ninfas e até a divindades, como por exemplo Júpiter disfarçando-se de touro para raptar a jovem Europa, de cisne para cativar Leda, de sátiro para violar Antíope, de serpente para penetrar Prosérpina e de ouro para seduzir Danae. O trabalho de Arachne era tão perfeito que a deusa não suportou a afronta da terrível acusação, que ultrapassou os limites da impiedade: era o grito da iniciada que não tolera o ultraje à sua essência de ser humano e sobretudo de mulher. A deusa Athena em cólera despedaçou a tapeçaria de Arachne onde os divinos e nefandos crimes se exibiam, e bateu-lhe no rosto, três ou quatro vezes, com a lançadeira que tinha nas mãos. Arachne desesperada correu a enforcar-se mas, no momento em que se suspendeu, Athena impediu-a de morrer — e transformou-a em aranha, suspensa pelo fio.


segunda-feira, 18 de maio de 2009

através do espelho




"O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o invisível do meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim".
O olho e o espírito
Maurice Merleau-Ponty


da solidão



Pago caro e usufruo sozinha a liberdade da solidão, tenho todas as pessoas presas em um instante de corte, seus genes, o cheiro e a memória afetiva estão amarrados. Sempre só, vou tecendo e costurando pessoas, a posse de seus corpos, preenchendo o vazio do meu útero seco, que aborta as continuidades afetivas em prol do momento único, ritualístico e poético com os corpos. O nascimento e a morte em um lapso temporal. Corpos nascem e morrem em minhas mãos, entrelaçados por uma existência efêmera construída apenas perante meu olhar parcial e limitador de um universo corporal infinito. A angústia inicia-se com o nascimento que é seu próprio aborto, um prelúdio do fim, gozo mortífero, dionisíaco, erótico e carnal do encontro e imediata repulsa entre os corpos. No autêntico encontro das carnes, a vida transborda com toda intensidade das vísceras até seu completo esgotamento, surge então o sujeito que termina provocando o fatídico aborto.
Preciso viver a sensibilidade humana segundo a ética das minhas próprias vísceras ou a jornada da existência se torna uma mera encenação medíocre, a mímesis daquilo que um dia foi o desejo. O recalque e o dilaceramento do jogo constante de adaptações e acomodamentos apenas refletem daquilo que foi o desejo. Minhas aspirações subjetivas não se limitam ao simulacro do rito, elas devem viver segundo cada ímpeto catártico do meu pré-sujeito, materializado em carne e secreções que se contraem aos caprichos do desejo. Preciso sentir com os poros, viver da ânsia e saciá-la até a última gota de vida. Fecundar o desejo e, em plena gestação, abortá-lo solenemente. Não seria capaz de gestar as carnes de um sujeito recalcado, traumatizado e subserviente, consigo apenas mumificar seu feto, como memória do instante da sagração carnal. Mumifico lentamente os corpos que se vão, ainda na esperança de descobrir a possibilidade de um sujeito materializado segundo uma ética própria, legitima e fiel aos poderes e fragilidades da sua própria abjeção carnal.
Cada sujeito é erguido perante uma dialética própria de circunstância visceral, carne e hormônios constantemente submetidos às dinâmicas cotidianas que vão da sobrevivência biológica à aquisição de cultura. Mentalmente tentamos decodificar as ansiedades que vem das nossas vísceras atirando-as ao mundo dos símbolos e da cultura visual. Esquecemo-nos de ver através da remela dos olhos, sentir com o couro e o sebo da cabeça, de joelhos ralados, com a garganta seca de sede, ardendo em febre e pela diarréia do ânus. Cada tecido embebido em fétidas secreções é capaz de sentir o outro através da sensibilidade do corpo, pela carne, sangue, fezes e gozo do outro. A essência humana está contida na possibilidade da troca física entre sujeitos solitários, trancafiados dentro de seus escafandros intelectuais. Sujeito este que eternamente só, carrega consigo apenas a certeza de morrer ainda limitado na descontinuidade do seu próprio eu. Percebemo-nos reais apenas quando sentimos através da nossa carne a possibilidade de outro eu, que reside num corpo semelhante e incrivelmente diferente na capacidade de sentir e ser sentido. Sem o corpo do outro ficamos presos na ficção do individuo dentro do jogo frenético da sociedade, apenas interpretando, classificando e julgando os outros através da estrutura hermética que rege a materialização dos sujeitos perante a sociedade.
Nunca seremos capazes de compreender a complexidade do outro ser, saber o que realmente se passa com ele. Estaremos sempre condenados às artimanhas estruturais da linguagem e da comunicação, construídas sobre as relações de poder que regem a sociedade. Subjetivamente nos resta o dionisíaco diálogo corporal, revelado ritualisticamente através dos desejos e sentimentos que se manifestam sobre e através da carne. Minha vontade pela arte vem da necessidade de guardar o sentir do outro, desejo esse naturalmente impossível. Contento-me, portanto, em guardar seus restos vitais na esperança de que a matéria, agora morta na capacidade de sentir, ainda seja capaz de produzir algum tipo de significado poético. Continuo atrelada ao corpo que se foi através de seus restos, percebo na minha carne suas texturas, cheiros e formas que suscitam lembranças em uma mente que inicia agora a manipulação dos signos culturais da percepção na ânsia de re-encontrar os desejos que se perderam com a matéria que era capaz de sentir.

pelos ritos corporais




Um organismo vivo em movimento espiral se desloca tão lentamente quanto a passagem do tempo. A psique e todas as suas nuances subjetivas, dos traumas freudianos à linguagem dos bites, vídeo, cabelo, registro e tecelagem. A obra finalizada em um objeto-plástico, constituído de estética eticamente processual, canônica e religiosamente sacralizada em pequenos ex-votos meticulosamente trabalhados, se mistura ao momento da ação-tempo. Performance também religiosamente estruturada. Rito público de introspecção do corpo e da mente, processo do tempo da água que demora para secar no chão e evapora rapidamente do vidro esfacelando o desenho que ainda não se encontra finalizado.